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O dia em que conheci Brilhante Ustra

"Não há um ato maior de covardia do que torturar. Bater e dar choques num sujeito nu, amarrado, sem possibilidade de defesa, em companhia de muitos outros"

“Não há um ato maior de covardia do que torturar. Bater e dar choques num sujeito nu, amarrado, sem possibilidade de defesa, em companhia de muitos outros”

Uma semana depois eu já estava acostumado com a rotina do DOI-Codi. Já estava sabendo que cada xadrez tem um número e o meu (ou nosso) é o X-5. Meu companheiro de cela era veterano do Presídio Tiradentes, me ensinou como preservar a saúde mental naquele ambiente de filme de terror.

Ele me ensinou a importância de varrer a cela todos os dias (tinha que pedir a vassoura ao carcereiro), a importância de manter boas relações com o carcereiro, que era o nosso contato com o mundo fora da cela (pedir pra ele fósforos queimados também era importante) e sobretudo tratá-lo bem para que levasse (sem querer, é claro), mensagens de uma cela para outra.

Eu só tinha a roupa do corpo (o pijama de flanela, cinza) e uma malha azul que meus captores pegaram no meu guarda-roupa e me deram para eu não morrer de frio. (Era setembro, mas ainda fazia frio.)

Eu já sabia que as torturas não tinham hora certa e que muitos presos eram sempre torturados à noite ou melhor, de madrugada. Quando os gritos eram muito fortes, o segurança aumentava o volume do rádio que ficava sobre a mesa na entrada do quintal.

A minha era a única cela com apenas duas pessoas. As outras estavam superlotadas. Também dei graças a Deus porque meu companheiro de cela era um cara muito inteligente, sagaz, tinha muitas histórias para contar e às vezes falava até o que eu não queria ouvir.

O carcereiro o levava ao segundo andar – o andar das torturas – um dia sim, outro não. Esse outro servia para ele se recuperar. O médico vinha examiná-lo superficialmente (sem nem entrar na cela) e para amenizar as dores dava uns comprimidos de Melhoral.

O médico também dava conselhos. “Conte logo toda a verdade para eles, só assim você vai parar de apanhar”. Meu companheiro não dava bola. Quando eu cheguei, ele já estava sendo torturado há sete dias. Tinha sete nomes, e se recusava a dizer como se chamava.

“Não falo com torturadores” disse certa vez.

Ao voltar da sessão de tortura, ele contava como tinha sido torturado e também o que perguntavam e ele não respondia e que ele contava para mim.

Nessas horas eu fingia que não ouvia. Entrava por um ouvido e saía por outro. Não queria lembrar nada do que ele contava. Imaginava que um belo dia eles iam querer saber o que ele contava para mim. E eu ia dizer o que: que ele não falava nada? Que não lembro? Até explicar isso eu já estaria debaixo de pau, ou no pau-de-arara, nu, pendurado como um frango de padaria e levando choques elétricos nos testículos.

Nunca disse para ele parar de falar, o cara precisava contar para alguém o que se passava com ele e só tinha uma pessoa para ouvi-lo: eu.

Um dia, não sei exatamente o número, tomei coragem para tomar banho frio mesmo, naquele frio. Ainda muito naif, pedi ao carcereiro uma toalha de banho.

O Alemão, um cara loiro, alto, magro (parecia meu irmão), sempre de bom humor era carcereiro e não o mordomo (como eu supunha). Disse que toalhas estavam em falta, mas que ia pedir para os presos de outra cela.

Ele voltou e jogou a suposta toalha pra mim. Estava completamente molhada. Mas completamente. Eu reclamei. Os caras do X-1 caíram na gargalhada. A brincadeira foi deles. Riam como duas hienas. Também riam histericamente quando ouviam gritos dos torturados.

“Pendura!”, gritavam, imitando a voz de comando dos torturadores.

Depois fiquei sabendo que eram ex-militantes de esquerda que passaram para o outro lado.

No sétimo dia, Alemão trouxe uma boa notícia:

“Você já pode pedir coisas da sua casa. O que você quer?”

“Papel e lápis!”

Ele riu. “Isso não pode. Nem livro. Roupa, toalha, sabonete, essas coisas”.

Pedi papel e lápis para anotar as poesias que eu fazia para passar o tempo. Era muita solidão. Logo de manhã o cara da minha cela subia para os interrogatórios e eu ficava ali sozinho, sem nada para fazer. Resolvi fazer uma poesia por dia. Poesias toscas, é claro, sem nenhuma preocupação estética ou formal, rimas pobres, apenas para ocupar o tempo e retratar, é claro, o que estava vivendo.

Poesia pronta, eu a repetia mentalmente milhares de vezes, para manter minha cabeça ocupada e não esquecer. No segundo dia, eu declamava (mentalmente) para mim mesmo a primeira e a segunda poesias, no terceiro dia, as três, e assim por diante.

No sétimo dia, eu queria papel e lápis. Ainda bem que o Alemão não perguntou o motivo.

“As palavras da cabeça ninguém toma.

Vou somando e só eu sei qual é a soma.

Temperando e só eu sei qual é o aroma”.

Esses são alguns versos que memorizei.

“O doutor veio saber

se eu estou melhor.

Estou.

Então já podem torturar,

ele não disse, mas pensou”.

Versos assim, rimas fáceis, para não esquecer.

A grande surpresa foi receber, dentre outras coisas, duas panelas ainda quentes com a comida preparada pela minha mãe. Embrulhadas em jornal para a comida não esfriar. Minha mãe pensava em tudo.

Uma supermãe. Sabem “idiche mame”? Era ela. Preciso dizer isso, porque em vida eu nunca consegui dizer a ela e nem agradecer por tudo que ela fez por mim e faz até hoje mesmo não estando aqui.

Ela era tão incrível que convenceu os caras do DOI-Codi que eu seguia uma dieta médica, chamada macrobiótica. E eles permitiram que ela me trouxesse comida todos os dias, na Rural Willys conduzida pelo meu pai.

Todos os dias.

Eles tinham que trabalhar, ela cozinhava e na hora do almoço embarcavam na Rural Willys creme e branca com duas panelas embrulhadas em jornal.

Era tanta comida que dava para mim e para meu colega de X-5. Até então eu só me alimentei com o café com leite aguado e um pedaço de pão dormido que o Alemão servia de manhã e à tarde. A comida eu não conseguia engolir.

Desembrulhei as panelas e tomei um susto. Quer dizer, uma sensação de susto e de felicidade. (“A felicidade do conhecimento é o conhecimento da felicidade”).

As panelas vieram embrulhadas no primeiro caderno do Jornal da Tarde do dia anterior. No banheiro, onde não podia ser visto, descobri que Allende estava morto, tinha sido derrubado por um golpe militar e o Chile virou ditadura.

Além da maravilhosa comida da minha mãe (só quem provou, sabe) recebi o melhor presente que um presidiário pode receber: informações do mundo de fora. A primeira coisa que os agentes da ditadura tentam evitar de todas as formas. Quanto menos sabemos, mais medo sentimos. E a única fonte de informação são eles.

Não lembro se era… ah, sim, lembrei agora, no fundo da vasilha de vidro ficou um resto de mingau de arroz integral (do regime macrobiótico). Então tive uma ideia muito arriscada, mas que julguei necessária. Escrevi, com um fósforo apagado (escrevi no relevo da sobra de mingau) uma mensagem para meus pais:

“Sou inocente”.

Eu precisava lhes dizer que não tinha cometido crime algum. “Sou inocente”. Fiquei muito preocupado, é claro. Se o Alemão examinasse a louça e as panelas que devolvi, e o jornal, é lógico, podia sobrar para mim. Eu podia ser castigado. E o castigo, ali, é, no mínimo, choque nos dedos. No mínimo. Também poderia ser proibido de receber comida.

Mas o Alemão não examinou nada. Todos os dias, à mesma hora, surgia no xadrez com a sacola abençoada, recheada de deliciosas comidas e informações preciosas.

Todos os dias. Sem falhar um. Sábado, domingo, feriado, com chuva e com sol. Minha mãe e meu pai nunca falharam comigo. Só eu falhei com eles.

Eu já podia tomar banho (tinha a minha toalha), tinha jornal para ler (escondido, lógico) e ainda por cima podia encomendar o que quisesse. Meu colega, um dia, pediu abacate e leite moça. Depois plantamos o caroço de abacate num pote, não lembro do que.

Abacate com leite moça no DOI-Codi. Mais uma façanha da minha super-mãe. (E eu nunca consegui agradecer o suficiente por isso.)

A cara dos torturadores era medonha.

O primeiro que vi foi o cara que perguntou sobre a minha agenda. Vou tentar descrever.

Magro, alto, rosto chupado, olhos saltados. Lábios finos. A voz era estridente e sempre um tom acima do normal. As sobrancelhas eram ameaçadoras.

“Se não disser a verdade, já viu”.

Fiquei pensando se esses caras eram “normais”. Ou seja: aquela cara de monstro, aqueles gritos, e aquelas coisas que faziam era só lá no DOI-Codi ou em casa também? Ou em casa era o marido fiel, o pai zeloso, o vizinho solidário? Esse cara era assim o dia todo, ou só naquela hora? O cara conseguia dormir depois de fazer tudo o que fazia? O cara fazia aquilo porque tinha raiva de gente ou porque pagavam bem?

Não há um ato maior de covardia do que torturar. Bater e dar choques num sujeito nu, amarrado, sem possibilidade de defesa, em companhia de muitos outros. Nenhum torturador torturava sozinho. Era sempre um bando. Seis contra um. Cinco contra um. (Continua)

Alex Solnik

Alex Solnik é jornalista. Já atuou em publicações como Jornal da Tarde, Istoé, Senhor, Careta, Interview e Manchete. É autor de treze livros, dentre os quais “Porque não deu certo”, “O Cofre do Adhemar”, “A guerra do apagão” e “O domador de sonhos”

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